O Legado - Nova tradução comentada do aforismo de Adorno
Tradução inédita do aforismo 98 da obra Minima Moralia, de Theodor W. Adorno.
FILOSOFIA
Evandro Arruda
10/3/20259 min read


Cora Pongracz, Thoedor W. Adorno, 1966.
Tradução comentada do aforismo 98 da obra Minima Moralia, de Theodor W. Adorno.
O Legado
O pensamento dialético é a tentativa de escapar[1] do caráter coercitivo da lógica com seus próprios meios. Mas na medida em que ele tem que se servir desses meios, ele se arrisca sem cessar a sucumbir, ele próprio, a esse caráter coercitivo: a astúcia da razão poderia impor-se mesmo contra a dialética. O existente só pode ser superado por meio do universal obtido a partir do próprio existente. O universal triunfa sobre o existente graças ao próprio conceito deste último, e é por isso que em semelhante triunfo o poder daquilo que simplesmente persiste ameaça sempre renascer da mesma violência que o quebrou.[2] No absolutismo da negação, o movimento do pensamento, assim como o da história e em acordo com o modelo de antítese imanente, torna-se evidente, exclusivo, implacavelmente positivo. Cada coisa é subsumida às principais fases da economia e ao seu desenvolvimento, na medida em que estas fases foram determinantes historicamente para o conjunto da sociedade: todo o pensamento tem algo do que os artistas parisienses chamam le genre chef d'oeuvre.[3] Que o desastre [Unheil] venha justamente do rigor[4] desse desenvolvimento; que isso esteja relacionado justamente com a dominação, eis o que, no mínimo, não é explicitado pela Teoria crítica que, como a tradicional, espera que a salvação [Heil] chegue em uma progressão por degraus. Rigor e totalidade, os ideais intelectuais burgueses de necessidade e universalidade, circunscrevem de fato a fórmula da história, mas é justamente por essa razão que a constituição da sociedade se inscreve nos grandes conceitos imovíveis e orgulhosos contra os quais se dirigem a prática e a crítica dialética. Se Benjamin disse que a história foi escrita até agora do ponto de vista do vencedor e que ela precisa ser escrita do ponto de vista dos vencidos, deveria ser adicionado que o conhecimento deve, é verdade, representar a sucessão desgraçada [unselige][5] e retilínea[6] de vitórias e derrotas, mas que ela deve também se voltar para aquilo que não se inseriu nessa dinâmica, aquilo que ficou na beira do caminho - o que poderíamos chamar de resíduos e cantos sombrios que escaparam à dialética. É da essência dos vencidos parecer insignificante, excêntrico, ridículo pelo fato mesmo de sua impotência. O que transcende a sociedade dominante não é só a potencialidade desenvolvida por ela, mas também aquilo que não se enquadrou nas leis do movimento da história. A teoria vê-se remetida ao atravessado, ao obscuro, ao incompreendido, que, enquanto tal, tem de antemão algo de anacrônico, sem ser inteiramente obsoleto, já que deu um drible na dinâmica da história.[7] Isso se percebe, sobretudo, na arte. Livros infantis como Alice no País das Maravilhas ou Struwwelpeter, diante dos quais a questão se são progressistas ou reacionários seria absurda, contêm mensagens incomparavelmente mais eloquentes, inclusive sobre a história, do que os grandes dramas de Hebbel, ocupados com a temática oficial da culpa trágica, das mudanças de eras, do curso do mundo e do indivíduo,[8] e nas ingênuas e estúpidas peças para piano de Satie brilham, fugazes, experiências[9] que a escola de Schönberg, com sua coerência e carregando nas costas o peso do desenvolvimento musical, não poderia sonhar.[10] A própria grandiosidade das deduções pode assumir inesperadamente um caráter provinciano. Os escritos de Benjamin são a tentativa de, numa abordagem sempre renovada, tornar filosoficamente fértil o que ainda não foi determinado pelas grandes intenções. Seu legado consiste na tarefa de não deixar essa tentativa entregue exclusivamente aos enigmas intelectuais causadores de estranhamento, mas alcançar o que não tem intenção por meio do conceito: na obrigação de pensar ao mesmo tempo dialética e não-dialeticamente.
Notas do tradutor:
[1] A tradução em inglês “break through” é mais próxima do que qualquer uma em português. Em alemão durchbrechen, composta de raízes aparentadas a break (quebrar) e through (através de), remete a abrir uma brecha em um muro. Assim, quebrar (trad. Bicca) e romper (trad. Morão e Cohn) expressam a unidade coercitiva dos grandes sistemas lógicos mas não expressam o caráter de fuga do verbo original.
[2] Um tanto obscuros, esses dois períodos anteriores talvez fiquem mais claros quando lidos em conjunto com o aforismo 149 da Minima Moralia (a partir daqui: M.M.), no qual Adorno aborda a "a persistência da 'pré-história' " – formulação de Marx à qual ele é o primeiro a dar importância – e a tendência dos filósofos "de todos os matizes" a repetirem que "tudo o que tem do seu lado o peso persistente da existência provou por isso mesmo ter razão." (trad. Bicca). Isso aparece com outras palavras na dedicatória da M.M. como tendência da "Filosofia, como legitimação do subsistente" a se juntar ao "carro triunfal da tendência objetiva", referência por sua vez à Tese nº 7 Sobre o Conceito de História de Benjamin, mesma Tese que aparece mais adiante neste Aforismo 98.
[3] É frequente essa denúncia da obra-prima (chef d'oeuvre) por Adorno. À obra-prima corresponderia um conteúdo universalmente humano, harmônico, sem história - e conveniente para os vencedores. Trata-se de mais um ponto de profunda convergência entre Adorno e Benjamin, dos quais citamos os seguintes exemplos entre tantos outros similares:
“as obras exemplares não são as mais completas e perfeitas mas aquelas mais marcadas pelo conflito entre o objetivo de perfeição e sua impossibilidade” (Adorno: Valery's deviations, 1960, in: Notes to Literature II, trad. minha); “O caráter aberto do ensaio ... resste à ideia de 'obra-prima', que por sua vez reflete as ideias de criação e totalidade.” (Adorno: O ensaio como forma, 1958, Notas de Literatura I, trad. Almeida); “As palavras 'oficial' e 'obra-prima' [Hauptwerk] indicam o ponto fraco: o gênero chef d'oeuvre [...]. A obra-prima é a fracassada e objetivamente impossível tentativa de ressuscitar o culto. [...] Na realidade, ela cultua a si mesma.” (Adorno: Mahler, 1960, trad. minha); “Sabe-se que [Victor] Hugo inebriava-se com longas listas de nomes de grandes gênios [...] É preciso pensar, nesse sentido, na paixão do poeta em imaginar o próprio nome numa projeção gigantesca; sabe-se que ele enxergava um ‘H‘ até nas torres de Notre-Dame. Suas experiências espíritas revelam um outro aspecto do mesmo processo. Os grandes gênios, cujos nomes ele pronuncia incansavelmente e sempre em ordem diferente, são seus avatares, encarnações de seu próprio eu” (Benjamin: Passagens, Ed. UFMG, p. 813, trad. Aron).
[4] Em alemão: Stringenz, às vezes traduzido como estringência, essa palavra tem etimologia homóloga à de estrito e estreito, do latim stringere: apertar, comprimir. Já a palavra rigor deriva do verbo latim rigere, que significa ser rígido, inflexível. Optamos por rigor, mais comum em português, e é bom lembrar que, em termos musicais, a expressão italiana rigore di tempo equivale a tempo giusto e se refere à música tocada estritamente na batida do metrônomo, ao contrário de interpretações mais flexíveis designadas por accelerando, ritardando ou tempo rubato. Em resumo: tal rigor ou estringência pode ser comparado à previsibilidade constante do tic-tac de um metrônomo ou de um relógio.
[5] O uso, por Adorno, desses termos alemães de conotação teológica que aqui menciono entre colchetes, incluindo o par Unheil/Heil, é uma das dificuldades de se traduzir Adorno para outros idiomas. A palavra “unselig” poderia ser traduzida como “infeliz”, mas ao contrário desta, tão comum em português, trata-se de uma palavra rara na língua alemã quotidiana, com várias outras mais comuns para “infeliz” (traurig, unglückich, etc). Utilizada por Lutero no Sermão da Montanha no célebre trecho “bem-aventurados são ...”, selig expressa um tipo de felicidade de aspecto mais específico e teológico do que as palavras mais comuns citadas acima. Por isso optamos aqui por "desgraça", chamando atenção ainda para o amplo uso desses termos teológicos pelo jovem Walter Benjamin em obras como Destino e Caráter (1921) e Origem do Drama Barroco (1928), obras em que ele lança a preocupação com as temáticas do mito que se repete, do rompimento com o destino, constelação de temas que se fará muito presente na Dialética do Esclarecimento e na M.M. Nas traduções de unselig como infeliz (Morão) e infausta (Bicca), perde-se a lembrança do uso religioso da palavra.
[6] Geradlinigkeit, derivado de gerad-linig = linha reta.
[7] O drible aqui é uma tradução ousada: Bicca e Cohn traduzem como “pregou uma peça” e é claro que jogos de cartas ou o xadrez estavam bem mais próximos da imaginação de Adorno do que esportes com bola. Mas para o leitor brasileiro creio que o drible comunica perfeitamente o conteúdo: aquilo que ao longo do aforismo é descrito como insignificante, excêntrico, ridículo, resíduo e ingênuo combina bem com a imagem famosa do jogador magro e de pernas tortas que dribla um outro que teria um corpo mais forte e, supostamente, superior.
[8] Alice in Wonderland: livro infantil publicado em 1865 em Londres por Lewis Carroll. Der Struwwelpeter: livro infantil publicado em 1845 em Frankfurt por Heinrich Hoffmann. Christian Friedrich Hebbel (Wesselburen, 1813 – Viena, 1863): poeta alemão.
Ainda sobre essa temática, Adorno argumenta em aula que os escritos de Kafka, com seu caráter “não sistemático [...] de parábola”, são “mais cheios de sentido do que se pretendessem trazer [...] o conteúdo de uma cosmovisão homogeneizadora.” (Introdução à Dialética [1958], aula 16, Ed. Unesp, p. 417).
[9] Bicca traduz o verbo como “lampejam”. Minha tradução se inspira na Tese 7 Sobre o Conceito de História de Benjamin, onde lemos que a “verdadeira imagem histórica” tem um “relampejar fugaz" (trad. Rouanet). Na tradução que o próprio Benjamin fez para o francês, lemos “l'image authentique du passé - image fugitive et passant comme un éclair”.
Escolhi “brilham fugazes” para remeter ao conceito de fugacidade que aparece em diversos momentos da obra de Adorno, remetendo tanto à brevidade como ao “caráter fugitivo” e incerto da “felicidade [que] floresce à beira da catástrofe.” (Adorno: Mahler, cap. 2 e 4). Toda essa temática se aproxima de Proust (“La Fugitive” é o tíulo de um dos livros do Tempo Perdido) e de Benjamin, com quem Adorno discutia frequentemente sobre Proust.
Como aponta J.M. Gagnebin, o conceito de experiência [Erfahrung] atravessa toda a obra de Benjamin, desde um texto de 1913 intitulado Erfahrung. O conceito ganha papel central em textos dos anos 1930 como O Narrador e em seus ensaios sobre Baudelaire, nos quais Benjamin “demonstra o enfraquecimento da 'Erfahrung' no mundo capitalista”, e retorna na Tese 16 de 1940, na qual o historiador deve constituir uma "experiência" com o passado. (Gagnebin, 1987: Prefácio a "W.B. Obras Escolhidas I").
[10] É notável a grande quantidade de ocorrências da palavra sonho na M.M. Contra o estereótipo do Adorno mal-humorado, os sonhos, nos seus escritos, contrastam com o mundo que temos hoje e costumam andar junto com a denúncia de quem finge a harmonia perfeita, ou seja, quem finge que o sonho está a um ou dois passos de distância do aqui e agora. É significativo, portanto, o contraste entre a seriedade da escola de Schönberg e as experiências sonhadoras e ao mesmo tempo ingênuas de Satie.
No livro Filosofia da Nova Música, escrito nos anos 1940 assim como M.M., Adorno apresenta Schönberg “como o maior compositor vivo sem dúvida”, mas também “argumenta que essa contribuição construtiva objetivamente necessária [a técnica dodecafônica de Schönberg] também ameaça, por razões igualmente objetivas, ... reverter em algo mitológico”. (Citações da Carta de Adorno a Thomas Mann, 5/jul/1948, trad. do inglês).
Comentário do tradutor:
O livro Minima Moralia já tem três traduções em português: uma portuguesa (A. Morão, ed. 70) e duas brasileiras (L. Bicca, ed. Atica; G. Cohn, ed. Azouge). Embora essas traduções sejam boas, a forma do livro, dividida em aforismos que Thomas Mann comparou com uma estrelas de "forte campo gravitacional" justamente pelo estilo denso e concentrado (Carta de Mann a Adorno em 1952), gera desafios praticamente insolúveis aos tradutores. As centenas de menções a artistas e filósofos não são acompanhadas de notas, como se Adorno estivesse sempre dizendo ao leitor "procure se informar" sobre todas as referências. Além disso, outras referências implícitas podem ser inferidas e, nessa nova tradução do aforismo que cita duas vezes Walter Benjamin, sugiro levar a sério o título - "Legado" - e observar nele a síntese de uma ampla constelação de temas desenvolvidos por Benjamin e que são retomados como um legado do pensador mais velho na obra do mais jovem. Também chamo atenção, nessa tradução comentada, para a similaridade com a linguagem de Benjamin, na qual conceitos próximos à teologia são aproximados da teoria do fetichismo da mercadoria, pela qual Marx inverte a posição de sujeito e objeto entre as pessoas e as coisas. Nas traduções já existentes, a opção por palavras mais próximas do português cotidiano e menos carregadas teologicamente dificulta a constatação que ressalto aqui: que a opção desses autores por falar em destino, em mito, em graça, em desgraça - ao invés de conceitos mais "neutros" e seculares - foi um aspecto importante da teoria da História elaborada em conjunto nos anos 1930 por Benjamin, Adorno e Horkheimer, elaboração teórica à qual estes deram prosseguimento após a morte do primeiro. Não se trata, é claro, de apontar esses pensadores como idênticos, posição que seria absurda tendo em vista o próprio conteúdo do pensamento desses filósofos da chamada Escola de Frankfurt.



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